Sobre mães suficientemente boas

Ser Mãe é um universo de coisas. Um universo em relação, com outros universos complexos.

É um universo também no concreto, mas muito no subjectivo. 

Mãe é roupa suja, calendário de banhos, lembrete de aniversários. 

A sua cabeça tem departamentos: da administração, da logística, saúde e educação; É quase sempre a mais chata, a rabugenta, a que insiste na hora de deitar, na importância do brincar e das refeições variadas. É avariada, pois é. Esteve muitos meses focada, centrada, em altas rotações internas... em altas demandas externas... a vida dependia de si... tantos meses, que a sua rota avariou e passou a ser aos sucalcos, entre os altos e os baixos, entre lembrar-se e encontrar-se... entre perder-se e esquecer-se.  

Mãe é dentes serrados, cabeça em água, gravador repetidor. É não aguentar mais o caos. É ter saudade dele.

Vive em conflito, já depois de ter dito, entre dizer de novo ou desistir. Faz experiências, quebra-cabeças, muda de lugar. Tem espaço que sobra e, às vezes, é insuficiente para conseguir abarcar todas as diferenças, exigências, turbulências, condescendências, conveniências, divergências, desobediências e assistências... 

Respira! Ouve em eco constante o nome que lhe foi dado. Todas as perguntas encontram em si a resposta, pelos vistos... É o centro de comando, que coordena, supervisiona, responde e delega. Que sabe onde está tudo. Que sabe o que é preciso e quando é preciso.  

 

MÃE!  

Vê a vida a passar, em velocidade máxima. É nas fotografias, nos sapatos que não cabem e na roupa que não serve, nas reuniões da escola, no tamanho das fraldas, nos cortes de cabelo, no abraço que primeiro encontra o joelho no chão, depois as costas curvadas e, breve, é direto à barriga, depois ao peito. 

Mãe não tem a vida facilitada. Mãe é pau para toda a obra. É repositório de receitas, medicamentos e posologias, trabalhos manuais, cantigas e histórias, formas diferentes de dizer coisas, emoções... muitas!... contraditórias, intensas e engolidas, outras expelidas em alto volume, arrependidas e choradas, outras amargas, muitas embaladas de doçura de ver nos olhos dos seus filhos a maior das ternuras. Mãe é amparo. Mesmo naqueles dias, naquelas situações, naquelas discussões e arrelias, mesmo quando está esgotada e irritada, ensonada, apavorada, desolada... ampara. É dor acoplada. As suas, as deles, que seguem a reboque, vida fora, sejam grandes ou pequenos. 

Mas mãe também é gargalhada! Palhaçada! Dança descomplicada. Deixar sujar, virar a cara. Elogiar, desenvolver, explorar. Deixar-se espantar! Aceitar e perdoar. Aguentar.  

Mãe suficientemente boa é tudo isto. Cuidar, amparar, responder. Sofrer, ralhar, desculpar-se e desculpar. Sobreviver. Ser. Desenvolver. Libertar. Acolher. Amar. Estar. E aproveitar!  

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Fim

Ligação e separação

Sobre a capacidade de nos ligarmos, sabendo que a separação é inevitável.

São complexas todas as relações e são especialmente difíceis os movimentos de ligação e de separação, a partir da altura em que perdemos a inocência sobre o sempre. Quando começamos a amadurecer e percebemos que o sempre nunca dura e que, por isso, todas as relações envolvem, inevitavelmente, separação. Fim. Em último desfecho, senão outro, o fim trazido pelo próprio fim da vida. Mas, mesmo antes desse, ou mesmo sem outros fins mais concretos, há sempre fins e separações simbólicos a acontecer nas relações, nas suas transformações e na transformação que vem da própria vida, do crescimento. Pais e filhos passam por transformações que levam a movimentos de separação, amigos também, irmãos, casais... enfim, basta pensarmos um pouco nas relações mais significativas da nossa vida, e mais longas, para irmos percebendo os momentos em que transformações e separações mais ou menos naturais, mais ou menos esperadas, mais ou menos dolorosas ou mais ou menos conscientes, foram acontecendo. E ter esta consciência e esta angústia, facilmente nos leva a defender-nos. A querermos evitar a relação, para evitar esta angústia de algo que se tem e que se vai transformar. Perdendo alguns aspectos dessa relação, mas ganhando outros. Se evitarmos relações, com medo do que poderemos perder e sofrer, acabamos por cumprir com a separação mais radical: a de não nos ligarmos de todo. E ficamos desamparados na nossa própria solidão.

É dura esta profissão e esta condição humana, pois claro que a nossa profissão, enquanto psicólogos, é uma extensão da condição humana, cimentada em bases teóricas e clínicas. Mas trabalhamos com o que há em nós de mais profundo e verdadeiro, assim como nas nossas relações pessoais mais íntimas. Recebemos de braços abertos as pessoas que nos procuram. Muitas vezes embatemos em muros, tentamos entrar, sem sucesso. Tentamos abrir uma janela para entrar luz, mas tem de ser com tanta calma e minúcia que por vezes demoramos anos a escavar 1cm. Outras vezes, às tantas, somos nós os muros e nem os vemos. As mágoas da vida também nos atacam, somos humanos. É duro estar de braços abertos, querer ajudar, querer ser porto seguro e ser deixado, sem ter tido a hipótese. Sinto sempre que falhei, por muito que possa ver o muro alto que a pessoa trazia. Mas de certeza que falhei, porque fui espelho de uma relação antes falhada que não ofereceu segurança nem acolhimento, e falhei por não conseguir partir o espelho e oferecer, do outro lado, uma mão que segure.

Mas quando a ligação se dá, é igualmente duro que, passados anos, comecemos a ver indícios de fim. A transformação do outro, a nossa, leva-nos a chegar ao ponto em que a angústia da vida se torna mais integrada, em que as principais pedras dos sapatos foram sendo atiradas fora, com muito mais capacidade para perceber quando lá está outra. E a minha dúvida é: porque é que tem de haver um fim? Ou pode ser uma transformação? A verdade é que o caminho da relação e do auto-conhecimento é inesgotável. Não tem de existir um fim objectivo, mas aprendemos que isso seria um bom sinal, a seu devido tempo. 

De qualquer forma, a ligação mais direta pode perder-se, no tempo presente, mas e os fios que nos ligam nas memórias, no crescimento, na partilha, em conjunto? Sim, ficam lá, ficamos para sempre a viver na rede que nos liga e onde noutro tempo existimos criativamente. Mas, por muito que seja poético e que ajude a elaborar, a verdade é que o murro da dor da separação vai bater. E vai doer. Vai demorar a transformar o espaço entretanto vazio e a ver para lá do que é concreto. Todas as relações se transformam. Algumas, terminam. Outras, mudam de forma. Há as que mantêm a ligação, e há as que se desligam. Todos os fins implicam lutos. E há tantos fins na vida. E, por mais que doa esse fim, não é por isso que devem deixar de existir inícios.


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